"Ronald de Carvalho foi, em conjunto com Luís de Montalvor, diretor do primeiro número da revista literária Orpheu, publicada em Lisboa em Março de 1915, causando enorme polémica..."
Fujo de mim como um perfume antigo
foge ondulante e vago de um missal
e julgo uma alma estranha andar comigo,
dizendo adeus a uma aventura irreal.
Sou transparência, chama pálida, ânsia,
última nau que abandonou o cais.
No alvor das minhas mãos chora a distância
proas rachadas, longes de ouro, ideais…
Sonho meu corpo como de um ausente,
náufrago e exsurjo dentro da memória,
acordo num jardim convalescente,
vago perdido em outros num jardim,
e sinto no clarão da última glória
a sombra do que sou morrer em mim…
III — Gênese
Antes a alma que tenho andou perdida,
foi pedrouço a rolar pelo caminho,
topázio, opala, pérola esquecida
num bracelete real; foi caule e espinho,
bronze que a mão tocou, áurea jazida
por entre as ruínas de um país maninho,
e refletiu, fatal, o olhar da Vida
no corpo em sangue de um estranho vinho…
Foi casco medieval, foi lança e escudo,
foi luz lunar e errante lanterna,
e depois de exsurgir, triste de tudo
veio para chorar dentro em meu ser
a amarga maldição de ser eterna
e a dor de renascer quando eu morrer…
Avec ma traduction d'amateur en rouge:
I — Le Sens
Je fuis de moi-même comme un vieux parfum
qui s'échappe ondulant et vague d'un missel
et je crois qu'une âme étrange m'accompagne,
en disant adieu á une aventure irréelle.
Je suis transparence , flamme pâle, attirance,
le dernier navire ayant quitté le quai.
Dans l'aube de mes mains pleure la distance
proues fêlées, lointains en or, chimères…
Je rêve que mon corps est celui d'un absent,
naufragé et j'émerge dans ma mémoire,
je me réveille dans un jardin convalescent,
errant perdu en d'autres dans un jardin,
et je ressens dans l'éclat de la dernière gloire
l'ombre de ce que je suis mourir en moi...
Em 29 de fevereiro de 1915, Fernando Pessoa escreveu ao autor, agradecendo o livro que este lhe oferecera e fazendo uma apreciação de Luz Gloriosa:
- « O seu livro é dos mais belos que recentemente tenho lido. Digo-lhe isto para que, não me conhecendo, me não julgue posto a severidade sem atenção às belezas do seu Livro. Há em si o com que os grandes poetas se fazem. De vez em quando a mão do escultor faz falar as curvas irreais da sua Matéria. E então é o seu poema sobre o Cais e a sua impressão do Outono, e este e aquele verso, caído dos deuses como o que é azul no céu nos intervalos da tormenta. Exija de si o que sabe que não pode fazer. Não é outro o caminho da Beleza. »
- Fernando Pessoa in Correspondência (1905-1922), Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p.150.
A crítica de Fernando Pessoa parece ter influenciado o escritor brasileiro, que iria aderir ao modernismo, destacando-se a sua intervenção na Semana de Arte Moderna. Cinco anos mais novo do que Fernando Pessoa, Ronald de Carvalho viria a morrer, por coincidência, no mesmo ano do escritor português.
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