ESQUEÇO-ME DAS HORAS TRANSVIADAS…
Esqueço-me das horas transviadas
o Outono mora mágoas nos outeiros
E põe um roxo vago nos ribeiros…
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas…
Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgíaco… Trigueiros
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas…
No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés
No meu cansaço perdido entre os gelos
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância…
Fernando Pessoa, in “Cancioneiro”
Ruínas
Se é sempre Outono o rir das primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair…
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!
E deixa sobre as ruínas crescer heras.
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino de Quimeras!
Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais altos do que as águias pelo ar!
Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!… Deixa-os tombar… deixa-os tombar…
Florbela Espanca
Perdoa-me, folha seca, Pardonne-moi, feuille sèche,
não posso cuidar de ti. je ne peux prendre soin de toi.
Vim para amar neste mundo, Je suis venue au monde pour aimer,
e até do amor me perdi. et même l'amour je ne le trouve pas.
pelas areias do chão, sur les sables du sol,
se havia gente dormindo quand il y a des gens qui dormaient
sobre o próprio coração? sur leur propre coeur?
E não pude levantá-la! Et je n'ai pas pu la soulever!
Choro pelo que não fiz. Je pleure pour ce que je n'ai pas fait.
E pela minha fraqueza Et à cause de ma faiblesse
é que sou triste e infeliz. je suis triste et malheureuse.
Perdoa-me, folha seca! Pardonne-moi, feuille sèche!
Meus olhos sem força estão Mes yeux sans force
velando e rogando àqueles veillent et supplient ceux
que não se levantarão… qui ne se lèveront pas...
Tu és a folha de outono Tu es la feuille d'automne
voante pelo jardim. tournoyant dans le jardim.
Deixo-te a minha saudade Je te laisse mon désir
– a melhor parte de mim. - la meilleure partie de moi.
Certa de que tudo é vão. Dans la certitude que tout est en vain.
Que tudo é menos que o vento, Que tout est bien moins que le vent,
menos que as folhas do chão… moins que les feuilles sur le sol...
Crepúsculo de Outono
O crepúsculo cai, manso como uma benção.
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito…
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
As feridas que a vida abriu em cada peito.
O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.
Os pinheiros porém viçam, e serão breve
Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
Mais negros sobre a alvura unânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.
Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale…o horizonte purpúreo…
Consoladora como um divino perdão.
O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
Flocos, que a luz do poente extática semelha
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.
A sombra casa os sons numa grave harmonia.
E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.
Manoel Bandeira